segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Intimidade

Escreverias poesia com a tua existência? E fá-lo-ias por alguém?
Sim, eles querem fazê-lo. Severino odeia-os por isso. Observa-os friamente, devassa-os, enquanto os seus corpos recitam versos atormentados, estrofes de prazer e de dor, em olhos de fel que se abstraem dos lábios de mel.
Observa-os e alimenta-se deles. Saboreia sonhos e pesadelos. Conspira para se imiscuir num mundo privado que nunca poderia criar. Fá-lo sem sentimento. Sem remorsos. Destruir, para depois reconstruir, à sua própria imagem.
A sua cara é invisível.
Os dedos, gélidos, acompanham alegremente a melodia. Mahler insinua-se, e o homem mata-o, a cada novo sustenido – consome-o, a cada bemol. Sorri. As mãos aguardam, serenas, inebriadas por mantos aveludados de sangue, passado e futuro. O perfil sombrio espera por ser acordado da inacção de uma letargia de desprezo. Espera excitação. Quando lágrimas escorrem no palco, ele saboreia-as lentamente, fascinado pelo horror mundano.
Mantém-se oculto, na luz ofuscante.
E ataca, impiedoso. Invisível, sempre invisível.
As suas vítimas agradecem-lhe.
Desaparecem.
Perdem-se.
Perdem.

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